O baleiro do armazém do Júlio
Acabo de receber um e-mail enviado por mera coincidência sobre os anos 1970
Acabo de receber um e-mail enviado por mera coincidência sobre os anos 1970. Confesso que bateu uma vontade danada de revisitar velhos lugares. Bateu uma vontade louca de rever amigos de quem nunca mais tive notícias.Acontece que com o tempo vamos ficando sozinhos uns dos outros. Falo do tempo em que os tempos eram mais difíceis, mas se vivia melhor.
Do tempo em que se pedia uma xícara de açúcar emprestada à vizinha (hoje se pede a senha da rede sem fio).
Do tempo em que se pedia a benção aos pais antes de dormir.
Do tempo em que o armazém do velho Júlio vendia de tudo.
Vendia tamancos, chinelos de tiras e alpargatas Sete Vidas.
Cadernos e canetas-tinteiro.
Réguas de madeira.
Borracha bicolor – azul, para apagar tinta; e vermelho, para apagar lápis.
Lápis-tabuada.
Apontador Made in USA.
Ponteiras de borracha para lápis.
Pentes Flamengo.
No armazém do velho Júlio, encontrava-se de tudo:
Ratoeiras marca Luxo em alto relevo.
Latas de banha, café em grão, açúcar, farinha, erva-mate.
Panelas esmaltadas, chaleiras e cera Mundial.
Biotônico Fontoura e gumex
Pomada Minancora.
Arrancador de pregos.
Chave de fenda.
Martelo de orelhas.
Moedores de carne Milano.
Penicos em ágata de todas as cores.
Tachas Paulistinha.
Bombinha para aspergir inseticida.
Vidro de Creolina.
Groselha vitaminada.
O armazém do velho Júlio tinha de tudo. Lembra?
Ferro de passar à brasa.
Chaveirinho com corrente.
Máquina de cortar cabelo manual.
Mamadeira Flex.
Tecido em metro de riscado.
Camisas de linho.
Gravatas e lenços.
Botões de tamanhos variados.
Carretéis de linha em madeira.
Agulhas para máquina de costura Singer.
Nada isso, porém, me fascinava muito nos meus seis anos de vida.
A verdade verdadeira é que eu virava estátua diante do baleiro de três andares do armazém do velho Júlio, com suporte e base giratória. Quinze vidros com tampas de alumínio, cinco em cada andar. O baleiro vivia minado de balas Embaré, Soft e Fusca.
De vez em quando, o velho Júlio chupava uma bala Soft com um prazer irritante. A raiva comia um pouco meus dentes.
Com o bolso furado, restava-me engolir a raiva, colecionar o papel colorido das balas e chupar o dedo.
O baleiro do velho Júlio era a coisa que eu mais cobiçava na vida.
Talvez, melhores não eram aqueles tempos, pois éramos nós mesmos.