Não te quero mais
Agora, com a volta às aulas, voltam algumas recordações em flashback.
Agora, com a volta às aulas, voltam algumas recordações em flashback.Por falar nisso, essa crônica é contra indicada para menores de 40 anos. Caso você, jovem leitor, tenha menos de 40, não custa nada imaginar que também viveu essa história.
A verdade é que quase todos da escola do primário do Paredes fomos viciados, meninos e meninas. Pois é, fomos perigosamente viciados. Éramos crianças ingenuamente indefesas. Éramos crianças deliciosamente alienadas e não sabíamos de nada.
Antes que você arregale os olhos e caia duro de espanto, vou logo dizendo que a nossa droga era lícita. Era um envelopezinho contendo um pó colorido artificialmente. Diziam que de tão irresistível que era primeiro viciava e só depois matava. Matava a sede, é claro. Falo do Ki-Suco. Lembra dele?
Vinha em pacotes em mais de vinte sabores diferentes, estampados por uma simpática e sorridente jarra, com um litro de água colorida em seu bojo.
Bastava um envelope ou dois de Ki-Suco, água, açúcar e gelo para fazer a festa da criançada na escola, no piquenique, no aniversário e em tudo que era lugar.
Não demorou nada para virarmos dependentes químicos do Ki-Suco de laranja, uva, morango, cereja, framboesa, groselha, limão, abacaxi e outros sabores irresistíveis. Hoje em dia, as crianças são viciadas em Coca-Cola com sua alta concentração de 4-metil-imidazol (4-MI).
Não sei se você sabe, mas o ‘popularíssimo’ Ki-Suco nasceu em 1927 nos Estados Unidos com o nome de Kool Aid. Foi inventado pelo casal Edwin e Kitty Perkins, donos de uma empresa de sucos concentrados e engarrafados. Como o produto oferecido por eles era bastante caro, quebrava e estragava com facilidade, transformaram o suco em pó e, no ano seguinte, lançaram o novo produto no mercado. O refresco teve um sucesso instantâneo quase no mundo todo.
No início da década de 1960 foi lançado no Brasil e logo me viciou, eu e meus colegas de escola. Falando a verdade, éramos viciados em tudo o que não prestava: balas assassinas Soft, que tinham o diâmetro exato para fechamento de traqueias; chicletes Ping-Pong; pirulitos Zorro; e Ki-Suco. Isso, segundo nossas preocupadíssimas mães, é claro.
Nossas antenadas mães achavam que o corante do Ki-Suco fazia um estrago danado ao estômago. Diziam que com o tempo íamos mudando de cor e desbotando. Todavia, nós crianças, éramos dependentes químicas desse pozinho colorido. Não conseguíamos sobreviver um dia sequer sem bebermos Ki-Suco, muitíssimo Ki-Suco. De vez em quando nossas mães nos puniam, proibindo terminantemente o Ki-Suco. Essas crises de abstinência eram dramaticamente terríveis, tanto que implorávamos e chorávamos copiosamente para que nossas mães voltassem atrás e liberassem um pacotinho de pó.
Cheguei até aqui para revelar a você que o Ki-Suco foi culpado de a Laurinha ter terminado comigo. Foi em sua festinha de aniversário em final de fevereiro, regada a biscoito colonial e Ki-Suco. Num momento de insensatez, e antes que a razão pudesse me impedir, meu vício voraz apoderou-se do meu corpo e roubei o copinho de Ki-Suco de framboesa da Laurinha.
Logo ela disparou:
– Suma daqui, não te quero mais.
Laurinha não quis nem saber das minhas desculpas e me deixou em uma situação bem embaraçosa diante de toda a turma.