Éramos felizes e não sabíamos
Domingo pela manhã íamos todos à missa na igreja matriz da Vila.
Domingo pela manhã íamos todos à missa na igreja matriz da Vila. Todo mundo espremido na carroceria do velho caminhão Ford. Íamos eu e você, papai e mamãe, vovô e vovó, primos e primos e os vizinhos dos quais passavamos a semana toda dizendo uns venenos. Também ia a costureira gorda que tinha de ser içada carroceria acima. Íamos todos com roupa domingueira e os cabelos penteados até não poder mais. Íamos todos felizes, apesar de carregar alguns pecados nas mãos, nos bolsos e no coração. Pecados que seriam absolvidos pelo Padre em troca de meia dúzia de orações, à título de penitência. Voltávamos da missa com fome, não a espiritual que havíamos saciado na missa, mas a fome do estômago. Faltam-nos palavras para descrever, porém nunca nos faltava apetite. Apetite dos grandes. A mesa de tábuas carcomidas. As tripas resmunguentas. A toalha xadrez. O arrastar incessante de cadeiras com os assentos de palha de milho esgarçada. A macarronada fumegante servida no panelão no centro da mesa. A distribuição farta de calorias. O garrafão de vinho tinto passando de mão em mão. Éramos felizes, muito embora papai, ao centro da mesa como um Cristo, mãos calejadas e maiores que as nossas cabeças, reprendendo excessos, botando ordem, distribuindo cascudos nos nossos cocorutos sem a menor cerimônia. Um olhar mais duro e ninguém ousava miar. Pratos devidamente lambidos, era servida a sobremesa de sagu. A delícia das delícias. O prazer dos prazeres. Antes das duas da tarde, íamos todos para a capela. Duas ou três moedas no bolso para o refrigerante e balas de banana. Os mais velhos reunidos ao redor de mesas, chapéu de pano mal equilibrado nos cocorutos, tufos de cabelos saindo das orelhas, para jogar Quatrilho, Bisca ou Escova. As mães jogavam conversa fora, sentadas em frente à pequena igreja. Reclamavam por terem de carregar um forno em suas barrigas. Parir dez, doze, quinze ou mais filhos... As meninas desfilavam suas blusas novas de uma manga só, com o braço enganchado uma na outra. As solteiranas, com a bunda caída como patinhas, sonhavam com o princípe encantado que viria montado numa velha bicicleta, enfeitada com fitas coloridas, pela estrada poeirenta. Você e eu e todo mundo fingíamos jogar bola enchendo-nos de caneladas. Pulávamos sem parar. Davámos cambalhotas. Soltávamos uns puns silenciosos, porém violentos e mortais. Desconjugávamos o verbo brigar. Eu brigo. Tu apanhas. Ele bate. Nós brigamos. Vós correis. Eles pegam. Tudo para nos exibir aos olhos das meninas que levavam a mão à boca e riam feito ratinhos. Alguém acionava o sino pendurando numa árvore. Deitávamos a correr para dentro da igreja para a hora sagrada da reza do terço. Findo o terço, os flertes e os namoricos sem que ninguém soubesse. Dedo no gatilho, estampido seco. Cheiro de pólvora queimada. Tombávamos mortos de paixão. O beijo no rosto duramente negociado com promessas ridículas e balas de banana. O calor do beijo ateava fogo ao fósforo sob nossas calças curtas. Levantávamos vento com a alavanca. Já era noitinha quando voltávamos para casa todos felizes e jantávamos o que havia sobrado do almoço.