Dia das Crianças
Acontece que vem aí o Dia das Crianças. Minha afilhada já me colocou contra a parede:
Acontece que vem aí o Dia das Crianças. Minha afilhada já me colocou contra a parede: – Quero a coleção da Barbie? O pedido escamoteou meu bolso. Tentei negociar. Joguei: – Não pode ser a Soneca que fala, ri, chora e pede para fazer xixi? Ela tratou de apressar a tempestade. Tinha horror a tempo bom, a danadinha, trovejou: – Não... Nem venha... nem pensar... Claro que como um hábil negociador que sou, tornei a carga. De mais a mais, sou quase um mestre na arte da persuassão. Conheço todos os truques e artimanhas do convencimento. – Tive uma ideia muito melhor que a Barbie. Que tal o Jogo das Estrelas? É sensacional. Relâmpagos rasgaram as nuvens pesadas, instaladas nos seus olhos. O mundo veio abaixo. – Não quero nem saber de Estrelas... Deixe-me contar a você quais foram os presentes mais fantásticos que ganhei em menino, dos quais guardo a mais viva lembrança. Claro que o primeiro deles foi uma bola. Mas não era nenhuma dessas bolas oficiais. Era uma bola cuja única semelhança que guardava com uma bola com gomos de couro sintético e sem costura dos dias de hoje era o fato de ser ligeiramente redonda. De resto, nada tinha de bola. Era de borracha de cor chumbo tão dura que desafiava a integridade física de dedões acostumados a achar pedras no escuro. A bola encheu meus dias de felicidade até que furou. Perdeu a metade do volume. A borracha, que já não era macia, virou uma pedra. Simplesmente petrificou. Podia, sem exageros, virar essas bolas de ferro que os presos arrastam presas à perna por uma corrente de ferro. Foi na idade dos oito que ganhei um presente que hoje é considerado politicamente incorreto. Era uma metralhadora de plástico, com gatilho, pente e tudo mais. Fiz misérias com aquela metralhadora. “Vamos, caía no meio do chão”, gritava eu de um lado. “Caía você”, devolvia meu amigo do outro. “Matei você”, tornava a dizer. “Não matou nada”, respondia meu amigo. “Não vê que acertei você?”... “Não acertou coisa nenhuma”... “Acertei bem na sua cabeça”... “Acertou só de raspão”... “Rá, tá, tá, tá”... Teve um segundo presente que deixou marcas profundas na minha infância. Um presente que simbolizou a glória e a riqueza. Embelezou-me a vida. Deixou-me com as orelhas sorridentes. Matou de inveja meus colegas de escola que não conseguiam tirar os olhos do meu tênis da marca Conga. Tinham a sola tão lisa quanto o vidro. Mais que caminhar, esquiava sobre a relva úmida da manhã. As congas eram excelentes para aplicar o famigerado “carrinho” nas brincadeiras com bola. Somente quem já foi dono de um par de congas compreende inteiramente do que estou falando. Também teve um outro presente do qual nunca mais esqueci. O presente não foi um brinquedo, mas uma ferramenta ou um utensílio agrícola que atendia pelo nome de enxada. Uma enxada nova em folha, ainda com o selo do fabricante. Até então, nunca tive uma enxada nova. Sempre cacos. Pedaços de metal desdentados num cabo de açoita-cavalo torto e em frangalhos. Dormi duas ou três noites com a enxada nova ao lado da cama. Caligrafei o colchão mijado de contentamento nos dias seguintes. Com ela capinei as ervas daninhas do tédio. O presente apressou em alguns anos o processo de fazer-me homem. Bom, agora preciso ir a uma loja de brinquedos...