Cravo-da-índia
Acho que nunca contei essa história aqui.
Acho que nunca contei essa história aqui. Se contei, vou logo me penitenciando. É mais uma dessas histórias que se passaram na terra que me viu nascer, Travessão Paredes.Por falar em Paredes, nas escolas e nos lugares em que me chamam para falar sobre livros e leitura, preciso responder a razão de o Travessão se chamar Paredes. Explico que o nome é uma homenagem ao agrimensor que mediu e dividiu as terras.
Antes de contar a você a história patética, uma pequena atualização em passado. O Brasil havia sido tricampeão de futebol no México. Na TV Telefunken, Tarcísio Meira e Glória Menezes arrancavam suspiros dos de espinhas na cara como eu. No rádio, Roberto Carlos só queria que você o aquecesse no inverno e que tudo mais fosse pro inferno.
Tomávamos Biotônico Fontoura, Sadol, Óleo de Ríssimo e Salamargo. Era o tempo do Aerowilys, do caminhão Ford, da bicicleta Monark com freio a tambor e que tínhamos que usar um prendedor de barra para não prender a calça boca-de-sino na correia. Todavia, bicicleta, carro e caminhão era coisa para pouquíssimos milionários.
Mascávamos, como bois ruminando, chicletes da marca Ping Pong e com eles disputávamos uma espécie de campeonato para ver quem fazia as maiores bolas. Geralmente, quando as bolas estouravam, melecavam o nariz e grudavam no cabelo de tal sorte que não raro só uma tesoura resolvia a situação.
Agora, vamos voltar ao dia mais esperado do ano: a festa em honra ao padroeiro do Paredes, São Paulo. Santo que atua contra mordedura de cobra.
O domingo era festivo com pipocar de fogos e badalar de sinos. A felicidade das felicidades.
Na véspera da festa, negociei um beijo com uma menina por quem estava perdidamente apaixonado. É claro que os dois éramos BVs, tanto seja, nossas bocas ainda eram virgens. Lembro que passei a noite rezando para que as horas corressem... corressem.
Pela manhã bem cedo, antes de o sol descer o monte dos Fabianos de gatinhas, comecei a embonecar-me. Unha do mindinho comprida usada para cavoucar o nariz, devidamente limpa. Cabelo lambido até não poder mais, à maneira de línguadas de vaca. Calça cor ovo herdada de um primo da cidade, cueca de saco de farinha, camisa volta-ao-mundo azul, sapatos de borracha e com centenas de furinhos para o pé respirar e não apodrecer.
É óbvio que não esqueci de mascar cravo-da-índia para eliminar o mau hálito causado, sobretudo, pelas cáries.
De repente, sentindo-me quase um Tarcísio Meira, meti-me na estrada em direção à capela, assobiando por dentro. Pouco depois, no átrio da igreja, vi minha deusa com a saia plissada verde, blusa rosa de um ombro só (era verão), cabelo preso de lado com uma fita amarela, maquiagem pesada como o diabo.
Disposto a não perder um minuto, aproximei-me mancando para disfarçar minha timidez, ainda com o cravo na boca, encostei o meu rosto no dela e perguntei todo confiante:
– Oi, adivinha o que estou mascando?
A resposta veio fulminante:
– Bosta de cavalo.
Acho que não preciso nem dizer que a grande festa acabou naquele mesmo instante.