Com os bolsos vazios
Já contei a você, saudoso leitor, muitas proezas minhas, tantas que tomo a liberdade de contar mais uma. Você já sabe que cresci gozando de má fama no meu Paredes e arredores.
Já contei a você, saudoso leitor, muitas proezas minhas, tantas que tomo a liberdade de contar mais uma.Você já sabe que cresci gozando de má fama no meu Paredes e arredores.
Também você já sabe que o armazém do velho Júlio vendia de tudo. Vendia tamancos, chinelos e alpargatas Sete Vidas. Cadernos, canetas Bic, régua de madeira, borracha bicolor – azul para apagar tinta e vermelho para apagar lápis.
Vendia lápis-tabuada e apontador Made in USA. Ponteiras de borracha para lápis. Pentes Flamengo. Ratoeiras com a marca Luxo em alto relevo. Latas de banha, panelas esmaltadas, chaleiras e cera Mundial.
O armazém do velho Júlio vendia, inclusive, Biotônico Fontoura, Gumex e pomada Minancora. Arrancador de pregos, chave de fenda, martelo de orelhas e moedores de carne Milano. Penicos em ágata de todas as cores. Tachas Paulistinha. Bombinha para aspergir inseticida. Vidros de creolina. Pentes Fanador.
O armazém do velho Júlio das Águas tinha de tudo mesmo. Ferro de passar à brasa. Chaveirinho com corrente metalizada. Máquina de cortar cabelo manual. Mamadeira Flex. Tecido de riscado em metro. Camisas de casimira, calças de linho e todo um mundo de coisas.
Nada isso, porém, me fascinava mais nos meus quatro anos de vida do que o baleiro.
A verdade verdadeira é que eu virava estátua diante do baleiro de três andares, com suporte e base giratória. Quinze vidros com tampas de alumínio, cinco em cada andar. O baleiro vivia minado de balas Embaré, Soft e Fusca. O desejo dos desejos. A tentação das tentações.
De vez em quando o velho Júlio chupava uma bala Soft com um prazer irritante. A raiva comia um pouco meus dentes. Restava-me engolir a raiva, colecionar os papéis coloridos das balas e chupar o dedo. O baleiro do velho Júlio era o meu altar sagrado.
Talvez, um pouco por vergonha, não tenha contado a você que fui pego em flagrante de delito pelo velho Júlio.
– Vamos, esvazie os bolsos – ordenou ele, severamente.
– Que bolsos? – perguntei, fazendo-me de parvo (que eu na verdade era).
– Ora, que bolsos – esbravejou.
Relutante, esvaziei o bolso, abastecido até a boca de balas deliciosas e irresistíveis.
– Vamos, agora o outro – tornou a ordenar o velho Júlio com absoluta determinação.
Enfiei a mão trêmula no bolso e de lá tirei mais algumas balas.
– Agora, vire os bolsos pelo avesso se não quer engolir as balas com papel e tudo – ameaçou-me.
A esperteza do velho Júlio ganhou da minha com enorme folga. Meia dúzia de balas caiu no meio do chão do assoalho de tábuas largas.
Então, o velho Júlio pegou-me pelo braço e arrastou-me para fora do armazém. Quando eu já ia longe, o velho não poupou os pulmões:
– Cuidado, Nini é um ladrão.
Duas fofoqueiras que andavam por perto ouviram isso e logo publicaram a notícia no vento, que o espalhou para o mundo todo sem precisar de rádio, TV ou jornal.
Quase gritei para as enxeridas cuidarem dos seus bicos, mas não tinha casca para isso.