Apenas uma história real
Ninguém diria que ele fizesse o que fez? Quantos anos ele terá? A idade, porém, pouco importa nessa crônica
Ninguém diria que ele fizesse o que fez? Quantos anos ele terá? A idade, porém, pouco importa nessa crônica recolhida do tecido do cotidiano.Ele mora aqui perto do local onde trabalho. Talvez você já o tenha visto em alguma esquina do bairro. É possível que ele tenha cumprimentado você alguma vez na vida, até mesmo porque ele cumprimenta toda gente, não importa quem seja, o dono do mundo ou de um famigerado circo de pulgas.
A primeira vez que cruzei por ele, deitei-lhe um olhar curioso. Ele me fez o sinal de positivo, esperando que a gentileza do cumprimento retornasse em amabilidade. Tudo o que fiz foi sorrir apenas com os olhos.
– Você é de Flores da Cunha, não é? – perguntou-me ontem, pela enésima vez.
– O.k. – respondi, monossilibicamente.
O protagonista dessa história não junta ideia que a expressão O.k. surgiu na Guerra de Secessão do general Lincoln, quando as tropas voltavam para o quartel sem nenhuma baixa e escreviam numa placa: “0 Killed”, ou seja, zero mortos.
Isso serviu apenas de pretexto para o fato de que ele se parece com um soldado confederado a caminho da guerra, com seu invariável uniforme azul e cinza, arrastando a perna esquerda (ou seria a direita?).
Preciso abrir um parentêses para dizer que quase nada sei da vida do nosso confederado, a não ser que era um jovem bonito e com um futuro promissor quando sofreu um acidente que lhe descontou algumas telhas.
Com algumas telhas a menos, qualquer chuvisco encharca-lhe a lucidez.
Apesar disso, algumas pessoas reputam-lhe má fama:
– O cara é um ladrão de marca maior, sim é verdade...
– Ele entra nas casas, não para dar um oi ou pedir um cafezinho, mas para roubar.
– Não lhe dê corda. O cara faz um tipo meio abilolado, mas lá no fundo ele sabe muito bem o que faz...
– Cuidado, não dê trela a esse sem vergonha.
Nunca quis acreditar nisso. Na verdade, sempre nutri grande simpatia pelas aparvalhados e com telhas a menos, porque acho que se pode ver Deus através deles.
Bem enchida a linguiça, vamos ao fato que aconteceu hoje pela manhã.
Estava eu no meio do trabalho, com telefones pulando no meu ouvido e papéis atapetando a mesa, quando uma colega veio com o recado:
– Os vidros do seu carro estão escancarados.
Como já levaram o rádio do meu carro e o dos meus colegas de trabalho, assaltaram o mercado em frente e a loja logo ali na esquina, desci a escada aos pulos e corri à rua em direção ao carro.
A pasta com carteira de dinheiro e tudo mais continuava intacta sobre o banco, da forma como a havia deixado na véspera. Aliviado, enchi os pulmões de ar para esvaziá-los bem devagar.
E agora a surpresa... Adivinha quem veio tocar o interfone para avisar do meu esquecimento? Exatamente ele, o cara com telhas a menos de quem tanto falam que é um ladrão de marca maior.