Apagando lembranças
Tenho vergonha de contar isso a você, mas já que comecei não vou desistir.
Tenho vergonha de contar isso a você, mas já que comecei não vou desistir. De repente me vejo passando a borracha em algumas lembranças borradas da minha infância. Desejo apagar minhas lembranças porque nelas tem uma lata de azeite Primor. Não é a lata de azeite que recebia uma centena de furinhos na base e virava um útil e prático chuveiro. Também não é a que recebia uma alça de arame e virava depósito de minhocas para as pescarias no riacho da Usina. Muito menos é a que era convertida numa poderosa retroescavadeira de brinquedo. A lata de azeite que desejo apagar é que se convertia em pinico. A lata de azeite enterrada debaixo da cama, virada em pinico, é a lembrança mais triste e remota da minha infância. Tem um quadro pendurado na parede da sala que preciso apagar das minhas lembranças... É a imagem de meus bisavôs eternizados em um retrato numa moldura de osso ovalada e filigramas dourados. A expressão generalesca do meu bisavô me persegue até nos dias de hoje. Toda a vez que precisava passar pela sala, botava os meus olhos no chão para evitar o olhar severo e recrimintário do meu bisavô. Olhar que exercia no bisneto a farda do siso. Não foram poucas as vezes em que planejei furar os olhos do velho com uma verruma. Cheguei a descolar o papel da moldura e tudo para dar cabo ao plano macabro, porém fui pego em flagrante delito pelo meu pai e logo em seguida pelo seu cinto de couro de boi. Ao contar isso a você, é como se virasse o retrato contra a parede. Tem um pé redondo que costuma latejar de vez em quando... Em carne viva está a lembrança do bichodepé (não é o bicho que você está pensando). O bicho-de-pé a que me refiro é um inseto da família das pulgas que se aloja na pele dos homens e de outros animais. O bichinho abre um buraco na pele para sugar o sangue do hospedeiro. Lembro que foi infectado no espaço entre os dedos do pé esquerdo. A coceira evoluiu para a inflamação e logo em seguida veio a infecção e por um centésimo de fio de cabelo não entrei pelo buraco da agulha. Passei quarenta dias com o pé do tamanho de um capacete, arrastando meus seis anos de idade de um lado a outro debaixo do parreiral. Todo parente ou vizinho vinha com um diagnóstico diferente e uma receita incrivelmente milagrosa; desde a popular creolina até, acredite, fatias grossas de polenta. Contando isso a você, tenho a impressão que a dor dessa lembrança se apequenou de alguma forma. Tem um sapato quarenta e quatro que me envergonha... Corte de cabelo estilo aritana, depenar galinhas, espalhar bosta de vaca na horta, correr atrás das palavras de mamãe na reza do terço sem colocar bocejos no meio, caminhar doze quilômetros todo dia para estudar é muito pouco perto do sapato quarenta e quatro. Desejo apagar a vergonha da lembrança, deixada pelas marcas do sapato quase o dobro do meu pé, cuja ponta papai cuidava em encher de papel velho. Papai temia que meu pé escapasse antes que os sapatos envelhecessem e se deteriorassem por completo. O sapato era tão grande que meus amigos, não sei se por ironia ou engano, cumprimentavam meu sapato, pois era maior que o comprimento do meu braço. Onde quer que fosse, meus sapatões chegavam bem antes que eu desse a cara. Desculpe-me acabar de um modo assim tão brusco, mas preciso descalçar imediatamente os sapatos, pois estão machucando meus pés de tal sorte que não aguento mais um segundo. Por falar nisso, você tem uma borracha para me emprestar?