Aconteceu nas férias
Acho que já contei essa história aqui antes, mas vale a pena você ler de novo...
Acho que já contei essa história aqui antes, mas vale a pena você ler de novo...Estava eu atrás de O Senhor das Moscas – romance escrito pelo inglês William Golding, quando adentrou a porta de vidro uma senhora engalanada; muitas joias, muito perfume, muito reboco no rosto.
Ela devia estar pisando na dura sombra que separa a idade da mãe da idade da avó. A contragosto, ouvi a conversa dela com o vendedor.
– Moço, vou curtir uns dias de férias na praia. Pode me indicar um bom livro?
Mais que depressa, ele objetou:
– É difícil indicar um bom livro, pois cada leitor tem um gosto diferente.
Ela espetou os cílios postiços, como se fosse uma gata de um antigo desenho animado e disse:
– Quem sabe nossos gostos não coincidem, hein?
– A senhora gosta de clássicos?
– Li alguma coisa no meu tempo de colégio.
– Que tal o clássico O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Bronte? – sugeriu ele.
– Acho os clássicos pesados demais. Não tem uma leitura um pouquinho mais leve, moço?
– A senhora já leu Pássaros Feridos, de Colleen McCullough? São 600 páginas de uma história de amor muito bonita e comovente.
– Meu nome é Rosângela, mas pode me chamar de Rô – disse ela, botando veludo na voz.
O vendedor nada disse, ela continuou:
– Seiscentas páginas é demais para a minha resistência física e intelectual, se bem que histórias de amor fazem um bem danado a um coração carente feito o meu. Entendeu, moço?
O vendedor fez um esforço do cão para resistir à tentação de sacudi-la, não só com palavras, mas também com a força das mãos. Rosângela prosseguiu:
– Sou preguiçosa para ler, admito. E há coisas mais interessantes para fazer num feriadão, não concorda? – sussurrou num tom de voz quente e meloso.
– Senhora?
– Moço!
Achei que a conversa iria a pique após ter entrado numa zona de forte turbulência, porém me enganei. Uma manobra exímia do vendedor estabilizou tudo:
– Penso que a senhora gostará de ler O Alto da Colina, de Irwin Shaw. É um best seller de meados dos anos 1970 do Século 20, se não me engano.
– Desculpe-me ga... – ia dizer “gato”, mas engoliu a sílaba e falou – garoto. O alto da colina não é uma leitura que exige fôlego, como o próprio título sugere, não é verdade?
– Quem sabe a senhora goste de um livro de poesia. A senhora pode pegar para ler na hora que quiser, de trás para frente e vice-versa. Temos várias sugestões de férias: Um por Todos, de José Paulo Paes; Apontamentos da História Sobrenatural, de Quintana; Vinte Sonetos de Amor, de Neruda, ou Quadrantes, de Flávio Luis Ferrarini.
– Ferrarini? Flávio? Quem? Nunca ouvi falar dele.
– É um escritor da nossa terra. Dizem que tem o dom da escrita, já publicou mais de 20 títulos nos gêneros de poesia, romance poético, crônicas, contos e narrativas infanto-juvenis...
– Acho a poesia enigmática demais. Moço, não tem um livro assim...
– Veja que capa bonita, toda em couro com título em alto-relevo – exclamou o vendedor, oferecendo-lhe uma agenda.
Saltei fora rápido, imaginando aquela senhora na sacada do apartamento, de frente para o mar, suspirando longamente ao tomar a pena para escrever (na agenda) bilhetes imbecis ao gentil vendedor.