A gente se acostuma
No trânsito, o carro da esquerda nos espreme contra a mureta de proteção. Os carros que vêm logo atrás nos ensurdecem com o som de suas buzinas estridentes.
No trânsito, o carro da esquerda nos espreme contra a mureta de proteção. Os carros que vêm logo atrás nos ensurdecem com o som de suas buzinas estridentes.Logo mais adiante, o motorista do caminhão se arrasta à velocidade de tartaruga, mas insiste em ultrapassar o colega caminhoneiro, causando um congestionamento de nervos.
A gente vai se acostumando ao trânsito caótico e estressante, mas não devia ser assim.
De repente, o relacionamento familiar entra na fase crítica do convívio. Apela-se para o distanciamento como forma de melhorar as tensões crescentes. Cada um enfiado em seu quarto, com a sua TV e o seu computador, comendo qualquer porcaria industrializada que mata aos poucos.
A gente vai se acostumando à solidão familiar, mas não devia ser assim.
Toda noite os apresentadores dos telejornais dão notícias por meio das quais ficamos sabendo que um avião caiu fazendo centenas de vítimas; um carro-bomba explodiu em frente à embaixada matando dezenas de civis; um número assustador de pessoas morreu na fila de espera do hospital; fulano, beltrano e sicrano serão investigados pela polícia por envolvimento com a “máfia da merenda escolar”; as vítimas das últimas tempestades e tufões estão sem ter o que comer, completamente desassistidas; o sol não voltou a sorrir para um jovem estudante que foi baleado por policiais que o confundiram com um bandido; o juiz fulano-de-tal aplicou uma falcatrua na Previdência que lesou milhões de pensionistas.
A gente vai se acostumando às mazelas cotidianas, mas não devia ser assim.
No banco, o caixa nos atende com sua habitual indiferença, muito embora nos mostremos pacientes e gentis o tempo todo. Na rua, sorrimos amavelmente para a primeira dama do município, porém, ela simplesmente joga os olhos no chão e nos ignora. Toda noite, na hora do jantar, a gente tenta puxar o fio de um assunto de ordem doméstica, tentativa vã, porque um punhado de silêncio passa de mão em mão, mas ninguém ousa quebrá-lo, até mesmo o gato sob a cadeira para a fim de escutá-lo.
Chefes incompetentes fazem uso da hierarquia e da intimidação para assediar, pressionar e humilhar seus subordinados curvados e sem voz.
A gente se acostuma com o mau caratismo, mas não devia ser assim.
Com o tempo, a gente vai se acostumando à indiferença, mas não devia ser assim.
Telefones bombardeiam os ouvidos do mundo. Motores das enceradeiras brigam com os das máquinas de lavar que ensurdecem o ronco dos barbeadores. O som infernal sai às ruas e duela com os motores e as buzinas estridentes dos veículos. Estas, por sua vez, nocauteiam os apelos dos vendedores ambulantes. O tique-taque do despertador governa o sono. O tique-taque no medo dá tiros na noite contra o medo.
A gente vai se acostumando à poluição sonora, sem piar, mas não devia ser assim.
A gente se acostuma à dor de cabeça que começa pela manhã, num sopro, e à noite já é apito. A gente se acostuma à marcha irrefreável dos cabelos brancos. A gente se acostuma viver na jaula da nossa casa tomada de grades, correntes, cadeados e alarmes e cães ferozes. A gente se acostuma aos lenços brancos das despedidas, aos adeuses das partidas. A gente se acostuma aos nãos diários de cada dia. A gente se acostuma à sede de um gesto de carinho que nunca é saciada. A gente se acostuma à bula dos remédios, apesar das contra-indicações. A gente se acostuma a não reclamar dos absurdos e também se acostuma a reclamar sem razão.
A vida não devia ser assim, mas a gente precisa ir se acostumando.