90 anos semeando ‘Flores’
Como bem já disse algumas vezes a você, raro leitor, sou anterior à geração privatizada do Brasil.
Como bem já disse algumas vezes a você, raro leitor, sou anterior à geração privatizada do Brasil.Na minha primeira infância, quando precisei morar na casa do meu avô tanoeiro, Pedro, para estudar no Colégio Frei Caneca, aproveitei exaustivamente aquele antigo espaço público chamado rua.
Gastava boa parte das minhas energias gritando um-dois-três-Flávio-salvo, embaixo de pitangueiras e chapéus de sol, desenterrando moedas no vão entre os paralelepípedos com um interesse quase arqueológico.
Brincava de perna-de-pau e de carrinho de rolimã no meio da rua de chão batido. Muitas vezes, aproveitava um cochilo do zelador da Praça da Bandeira para perseguir tico-ticos serelepes com meu estilingue endiabrado. De vez em quando, um tico-tico cansado das muitas perseguições fazia cocô na minha cabeça desprotegida.
Era comum brincar de tiroteio na rua e nos terrenos baldios, a qualquer hora do dia.
Naquele tempo, os carros alucinados ainda não pulavam em cima das pessoas feito touros furiosos.
Nossas armas mortíferas não passavam de um pedaço de pau com um tira de câmara de ar que disparava um projétil de madeira.
A probabilidade de acertar um alvo humano a mais de 10 metros de distância era a de um disparo em mil.
Um de nós dizia:
– Caía, acertei você.
O outro respondia:
– Acertou nada.
O primeiro tornava a dizer com mais veemência:
– Vamos, morra.
Escondido atrás de um poste de luz, o inimigo gritava:
– Não vou morrer coisa nenhuma, passou só de raspão.
Na minha ingenuidade, acreditava que a cidade era um lugar assim, por onde a gente podia correr, gritar e cavoucar sem maiores problemas.
Bem diferente do meu filho, por exemplo, que cresceu condenado pela violência – ou pelo medo da violência, que não deixa de ser, também, uma forma violência –, a rua já havia se transformado em mera passagem entre um lugar e outro. Já não havia mais tantos espaços livres, particulares e públicos.
Assim, meu filho adolesceu em casa cercada e monitorada, escolas, shoppings e outras instituições intramuros, em um pedaço da cidade que raramente excedia os limites da zona norte da cidade, ou seja, fundos do Estádio Municipal Homero Soldatelli.
Agora, o fluxo e os deslocamentos das pessoas são feitos dentro do esquema da necessidade imposta pelo trabalho. As pessoas isolam-se em espaços privados para fugir do caos urbano que, por sua vez, desestimula totalmente a convivência saudável em sua plenitude.
Os espaços se virtualizaram e se transformaram em fluxos de informação. Assim, os espaços se tornaram equivalentes, fazendo com que haja a desvalorização dos locais tidos como centrais.
A leitura que faço da minha querida Flores da Cunha que completa 90 anos de vida se ancora na possibilidade de interação e generosidade dos espaços públicos que convidem as pessoas a participar da vida da cidade.
Falo com fé, espero que com certeza.