"Queria ter a sua vida"
De repente, você e eu já nos vimos desejando secretamente a vida um do outro, não é mesmo?
De repente, você e eu já nos vimos desejando secretamente a vida um do outro, não é mesmo?Por falar nisso, esses dias aconteceu de eu dizer a um amigo.
– Você sim que é um privilegiado.
Indiferente ao comentário, meu amigo nada disse. Continuei:
– Você tem a vida que pediu a Deus.
Recebi uma resposta soprada:
– Pois é...
Continuei a provocá-lo:
– Queria ter a sua vida!
Dessa vez, ele respondeu com um bocejo digno de um hipopótamo.
– Tem certeza?
Prossegui:
– Queria ser seu irmão no bem-viver.
Meu amigo, mudo como um peixe. Forcei a atenção dele:
– Olhe para mim? O segredo para parecer jovem é comer devagar e mentir a idade.
Queria arrancar dele um “Sim, a minha vida é maravilhosa, graças a Deus”. Por isso, eu disse:
– Você mora em mansão, tem carro que voa, tem iate, chácara, esposa jovem e bonita, filhos lindos...
Ele apressou-se em acrescentar:
– Pois é, também tenho fazenda, casa na praia, aplicações na bolsa...
Complementei:
– Você tem tudo na vida e pode até ter o amanhã se quiser.
Pela primeira vez desde que começamos a conversar, ele esboçou um sorriso. Animei-me:
– Você é o típico cara bem-sucedido, sabe...
Ele interveio:
– Depende. O que você acha que é um cara bem-sucedido?
Expliquei:
– Você não foi punido pelo destino e nem agredido pelos dramas da vida. Você é bem-sucedido financeiramente, socialmente e sentimentalmente.
Antes que o meu amigo falasse algo, eu ainda disse:
– Você é um vitorioso, ao contrário do seu amigo aqui, que quando chegou em primeiro lugar, o ônibus já tinha partido.
Visivelmente irritado, meu amigo esfregou as mãos, pensou um instante e perguntou-me:
– Quer dizer que você gostaria de ter a minha vida?
Respondi sem pestanejar:
– É claro, e quem não gostaria?
Meu amigo entregou:
– Então pegue e leve tudo, inclusive a minha insônia delirante, a infidelidade da minha esposa, a solidão, as hemorróidas, a hepatite tipo C, o cálculo renal, o bico de papagaio, o disco de hérnia, a gastrite nervosa, o medo de encarar a vida...
Deixei escapar:
– Tudo bem, não precisa dizer mais nada.
Dei-lhe um abraço afetuoso e pude sentir uma lágrima fria a molhar meu rosto.