Alessandra Pauletti e Madeleine Ferrarini

Alessandra Pauletti e Madeleine Ferrarini

Entre Uma Coisa e Outra

Alessandra Pauletti, artista visual. Nasceu em São Paulo e reside, desde a infância, em Nova Pádua. Em seu trabalho explora o universo das narrativas mitológicas. 

Madeleine Ferrarini, psicóloga, florense. Idealizadora e coordenadora do Instituto Flávio Luis Ferrarini.

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O espelho da adolescência

Desprezamos e nos apaixonamos pelo próprio reflexo, assim como Narciso, que de tanto admirar sua imagem morreu de sede à beira da fonte

A adolescência é a época em que buscamos a liberdade, nossa identidade e a independência emocional, conquistadas pela confiança em nós mesmos enquanto se navega em um navio à deriva. Idealizada como ‘a era de ouro da existência’, já foi uma etapa bem mais direta e objetiva.
Todavia, muitos não tiveram a oportunidade de viver esse período de transição entre o mundo infantil e o adulto, ficando a sensação de que algo lhes foi tirado e/ou negado. Ter que amadurecer a ‘fórceps’, tornar-se adulto instantaneamente, nem sempre é agradável e pode trazer dificuldades para compreender o jeito juvenil de ficar à deriva, no qual muitos quase naufragam. Já outros tem um deslumbre por essa fase da vida, querendo vivenciá-la tardiamente ou, ainda, perpetuá-la nos filhos como seus representantes. 
Os que tiveram a oportunidade e o luxo de experienciar a adolescência, muitas vezes costumam esquecer como já foram, conforme mostra o conto Duas imagens em um tanque, do escritor italiano Giovanni Papini. O autor ilustra muito bem o modo como afogamos a memória da nossa adolescência. Nostálgico, um senhor andava pelas ruas da cidade que um dia lhe foram familiares, quando parou junto a um jardim abandonado onde encontrava-se uma fonte. Ao contemplar-se em suas águas, como costumava fazer, levou um susto: ao seu lado viu alguém muito parecido com ele. Com assombro descobre ser ele mesmo, quando jovem. 
No início há entusiasmo, no entanto, conforme vão se encontrando e conversando, o mais velho começa a impacientar-se com os interesses e a ingenuidade do jovem; os assuntos, para ele, já não têm mais importância. Condena-lhe sua individualidade. Enfim, decide deixar a convivência, mas seu duplo mais jovem não entende essa atitude; pede e implora para não ser abandonado. O eu do presente, em um gesto desvairado, livra-se do eu do passado, afogando-o nas mesmas águas da fonte onde se viram refletidos pela primeira vez. 
Entre uma coisa e outra, esse conto de Papini nos revela que a adolescência segue conosco como nosso espelho. Na maioria das vezes, não suportamos lembrar o quanto já fomos toscos, como erramos conosco e com as outras pessoas, como nos machucamos e ferimos outros por inexperiência e falta de empatia. Fantasias e ideais provenientes da fase da adolescência nos interrogam, fazem cobranças, geram lembranças. 
O perigo é que, por conta dessas pendências com a nossa própria juventude, podemos afogar a relação com os adolescentes que nos rodeiam hoje, esquecendo que também tivemos que transitar por mares enfrentando nossas tempestades emocionais. 
Qualquer espelho que encararmos depois de adultos pode se assemelhar ao tanque de Papini, pois a autoimagem mais duradoura ainda é a juvenil. A lembrança da nossa aparência infantil advém principalmente de alguma fotografia. “Crianças não ficam se contemplando. Quando pequenos, eram os outros que nos olhavam”. Com a adolescência chega o espelho, que é consultado e questionado noite e dia, como se nele estivessem as respostas de quanto valemos e sobre o que somos. Grande parte da construção ansiosa e insegura de uma identidade, ao longo da juventude, é toda encenada em frente ao espelho, ou qualquer coisa similar a ele. Desprezamos e nos apaixonamos pelo próprio reflexo, assim como Narciso, que de tanto admirar sua imagem morreu de sede à beira da fonte.
Crescemos, portanto, ‘aos trancos e barrancos', do jeito que encontramos, e somente muito mais tarde seremos capazes de, quem sabe um dia, agradecer ao adulto que nos tornamos e, principalmente, aos adultos que, antes de nós, pagaram pelo luxo da nossa adolescência poder existir.

Obra: O espelho de Narciso 
Arte: Alessandra Pauletti

*Fonte: “Adolescência em Cartaz: Filmes e Psicanálise para Entendê-la”, dos psicanalistas: Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso.