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Doe vida, seja um doador de órgãos

Você avisou seus familiares que é um doador? Mais da metade das famílias do Rio Grande do Sul dizem não ao ato solidário. Conheça o caso do caxiense radicado em Flores da Cunha Leonardo Bolzan

Algumas doenças podem chegar a um estágio em que provocam o mau funcionamento e até a parada de um ou mais órgãos. Antigamente essas pessoas morriam inevitavelmente. Hoje em dia, para algumas delas existe a opção de receber um transplante de órgãos, isto é, receber um órgão ou uma parte de um órgão (chamada tecido) de outra pessoa viva ou com morte cerebral. Doação é o ato de dar, em vida ou após a morte, uma parte de seu corpo para salvar a vida ou melhorar a saúde do outro. Foi uma doação dupla de rins e pâncreas que salvou a vida do caxiense radicado em Flores da Cunha Leonardo Bolzan, 37 anos. Aos três anos de idade ele foi diagnosticado como portador de diabetes e, depois de perder a visão, seus rins pararam de funcionar. O transplante era a única chance de não ter sua vida interrompida.

“O dia 13 de dezembro de 2013 é uma data que marca uma nova vida para mim.” Um ente querido que faleceu e uma generosa família desconhecida foram os responsáveis pela possibilidade de Bolzan estar hoje sendo exemplo do valor da doação de órgãos. “O diabetes vai causando problemas diversos com o passar dos anos e comigo não foi diferente. Aos 22 anos tive 80% da minha visão tomada por um derrame intraocular em decorrência do diabetes. Depois de vários procedimentos a visão voltou, não normalizada, mas hoje enxergo 85%. Pouco tempo depois veio o problema nos rins e, em um curto período, perdi completamente a função que eles desempenham. Meu diabetes já estava de difícil controle e foi me destruindo aos poucos”, conta o projetista que está cursando Arquitetura.

Ele encarou um ano e oito meses de diálise e recebeu do médico uma sentença: “Eu tinha um ano de vida caso um transplante não surgisse. Daí por diante foram duas ligações para possíveis doadores que não deram certo, pois não houve uma compatibilidade ideal e, para mim, felizmente, essa similaridade bateu na terceira possibilidade de doação. Todos os pacientes que fizeram diálise comigo não tiveram a mesma sorte e hoje já não estão mais aqui”, lamenta.

Em função do diabetes, o pâncreas de Bolzan nunca funcionou e, por este ser um dos órgãos que mais tem casos de rejeição, ele buscou atendimento junto à Policlínica Pato Branco, de São Paulo, referência neste tipo de transplante. “Fiquei na fila menos de um ano, fui agraciado num domingo de meio-dia. Tinha acabado de almoçar quando o telefone tocou e me chamaram para em 10 horas estar em São Paulo, pois tinham um possível doador. Quando cheguei lá o exame de compatibilidade deu certo e pude realizar meus transplantes”, relata, emocionado.

Bolzan precisou permanecer por mais quatro meses no Hospital Bandeirantes, em São Paulo, para uma recuperação lenta imposta pelo corpo diabético. Pouco a pouco as cicatrizes foram se fechando e ele pôde voltar para casa. “Retomei minha vida com alguns cuidados que levo até hoje, mas que me permitem ter uma rotina normal. Meu diabetes está controlado e a insulina já não é mais necessária. A definição de doar órgãos é um ato de amor e de caridade. Um único doador pode salvar e qualificar a vida de tantas outras pessoas e por isso incentivo para que se fale sobre a doação de órgãos”, ressalta Bolzan.

 

55% das famílias recusam a doação

Nem todos os pacientes que estão nas listas de espera por órgãos têm o mesmo final feliz de Leonardo Bolzan. De acordo com o Centro de Transplantes do Rio Grande do Sul, o Estado tem mais de 1,3 mil pacientes na lista de espera. O rim é o órgão mais aguardado por pacientes gaúchos – 872; outros 170 aguardam por um doador de medula óssea; 145 de fígado; 85 de pulmão; 16 por córnea; 17 de coração; e 13 por pâncreas e rim. Esses números poderiam estar mais baixos não fosse o alto percentual de negativas das famílias. Em agosto deste ano, dos casos em que poderiam haver doações, 55% não se concretizaram por uma opção das famílias. O percentual do mês é o mais alto do ano e expõe uma fragilidade que pode ser fatal para quem aguarda por uma nova chance de viver.

Para a médica nefrologista Luciana do Amaral Leonardelli, que atua no Instituto de Nefrologia do Hospital Pompéia (Innefro), onde o primeiro transplante de rins foi realizado em 1992, a demanda por órgãos sempre será maior que a oferta. O desafio é sensibilizar e esclarecer famílias e a população. “A demanda é maior, com isso precisamos aumentar a captação de órgãos, e como isso é feito? Com sensibilização de pessoas e organização intra-hospitalar. Isso só acontece quando a equipe se interessa e tem a causa para si. É preciso capacitação e organização dos hospitais”, esclarece Luciana. Historicamente, a rejeição familiar é a principal causa da não doação. Desde 2013 o percentual é superior a 40% ao ano.

Em Flores da Cunha, o único atendimento relacionado à doação de órgãos e tecidos é a parceria entre o Hospital Fátima e o Banco de Olhos/Lions Clube São Pelegrino do Hospital Pompéia para a captação de córneas. Desde 2009 foi firmado um convênio onde uma equipe de Caxias se desloca para o município sempre que recebe a informação de um potencial doador. Desde o início do convênio, 41 doações de córneas foram efetivadas em Flores. Em 2017 ainda não foi realizado nenhum procedimento.

De acordo com o enfermeiro da Organização de Procura de Órgãos do Pompéia (OPO3), Anderson Nunes Lopes, o índice de doação vem aumentando progressivamente no hospital. O registro dos oito meses de 2017 de notificações e doações de múltiplos órgãos e tecidos já superou o total de 2016. Até o momento foram 36 mortes encefálicas com efetivação de 21 doadores – ano passado foram 35 notificações com efetivação de 19 doadores. “Embora os números sejam animadores, a espera ainda é expressiva”, constata o enfermeiro.

A nefrologista Luciana complementa que para a efetivação de uma doação múltipla de órgãos, a causa do óbito deve ser morte encefálica e essa causa vem tendo mudanças nos últimos anos. “Uma vez a maioria dos casos de morte encefálica era resultado de traumatismo craniano em acidentes de trânsito. Hoje, contudo, é o AVC hemorrágico a principal circunstância. Percebemos que mudou o perfil do doador”, analisa.

O OPO3 faz parte de uma rede estadual. São cinco regiões onde o trabalho é totalmente voltado para a captação. “Quando mantemos um paciente com morte encefálica na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) é porque ele pode beneficiar de seis a 10 vivos. Não o vemos como uma pessoa morta, mas uma pessoa que vai dar vida para outras”, valoriza Luciana. A médica complementa que o Brasil conta com um dos maiores sistemas públicos de transplante de órgãos do mundo, onde o SUS oferece desde a captação do órgão até a manutenção e medição após o procedimento, tudo de forma gratuita.

Os números

Segundo dados do Centro de Transplantes do Rio Grande do Sul, em 2017 (dados até setembro) foram 191 doadores efetivos. Neste ano, somados órgãos como rim, fígado, pulmão e coração, foram realizados 510 transplantes no Estado, sendo que a grande maioria é de rim (374), seguido pelo fígado (92) e depois pulmão (30). No Estado foram realizados 14 transplantes de coração em 2017. No transplante de tecidos, onde são incluídas córnea, esclera (branco do olho), osso e pele, somam-se 925 transplantes em 2017, na sua maioria de córnea (488), depois osso (297), e em terceira colocação a esclera (132).

O Brasil registrou em 2016 o maior número de doadores efetivos da história: 2.983. Além disso, registrou-se crescimento de 103% no número de potenciais doadores entre 2010 e 2016, passando de 4.997 para 10.158. Outro recorde ocorreu em relação aos transplantes de coração: em 2016 foram 357 procedimentos, crescimento de 13% em relação ao ano anterior, conforme levantamento do Ministério da Saúde.

 

Os transplantes na região

Hospitais de Caxias do Sul e Bento Gonçalves são autorizados a realizar apenas alguns tipos de transplantes. A maioria, no entanto, acontece em Porto Alegre, como é o caso de transplantes de coração, fígado, pâncreas, pulmão, medula óssea, valva (parte do coração) e pele. Os estabelecimentos precisam ser autorizados pela Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Transplantes (CGSNT) para realizar os procedimentos. Confira na região quais são os transplantes realizados e onde eles ocorrem:

Córneas

– Hospital do Círculo (Caxias do Sul).

– Hospital Geral (Caxias do Sul).

– Hospital Nossa Senhora de Pompéia (Caxias do Sul).

– Hospital Saúde (Caxias do Sul).

– Hospital Tacchini (Bento Gonçalves).

Rim

– Hospital Pompéia (Caxias do Sul).

Enxerto ósseo

– Hospital Tacchini (Bento Gonçalves).

– Hospital Pompéia (Caxias do Sul).

 

Diagnosticado com diabetes aos três anos de idade, Leonardo Bolzan pôde começar uma nova vida em dezembro de 2013, quando conseguiu realizar um transplante duplo de rins e pâncreas. - Camila Baggio/O Florense
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